terça-feira, 3 de setembro de 2013

Nome de guerra: JESUS



Os últimos tempos dão-nos muito que pensar. Dou comigo a fazer o balanço daqueles anos em que julgávamos que podíamos construir um futuro novo. E porque tenho a salutar capacidade de me rir de mim próprio, quero partilhar convosco uma saborosa história que se passou comigo, naqueles tempos.
Saído do Seminário em pleno Verão Quente, vinha imbuído da social-democracia que em Portugal tanto se podia chamar PPD como PS. Mas o meu pai dizia que devemos estar sempre do lado do trabalhador e eu não via isso nestes partidos. Andei baralhado, por uns tempos, mas um dia vi na televisão um comício da UDP e decidi-me. Nas nossas Festas de Verão, em finais de setembro, já éramos um grupinho e acabámos por conhecer um casal dos Borregos que tinha vindo de Lisboa saber como era o Portugal profundo dos seus pais. Levaram o nosso contacto e meses depois já eu insultava o grupo de agricultores que, ciosos da propriedade privada, boicotaram uma sessão de esclarecimento sobre a criação de uma cooperativa agrícola em terras do Visconde de Tinalhas, dinamizada por um nosso camarada engenheiro agrónomo. Livrei-me de uma carga de porrada por ser filho de quem era, soube anos depois.
Um dos pontos altos da minha atividade política foi a campanha eleitoral de Otelo à Presidência da República, em 1976, já na fase mais cinzenta da ressaca da revolução. A minha terra teve um dos maiores GDUPs da região. Após as eleições, a polícia andou pelas aldeias a recolher os nomes de todos os apoiantes do Otelo, numa ação à escala nacional. Ter sido integrado nessa lista pidesca é para mim uma grande honra, ainda mais sabendo ao estado a que esses senhores do 25 de Novembro nos trouxeram (e mesmo discordando na altura e agora, de tantas e tantas coisas que a esquerda revolucionária pensava e fez).
No final do ano, retomei os estudos, em Castelo Branco. Fui imediatamente integrado na estrutura local da UDP. Depois contaram-me um segredo: a UDP não era tudo, o tudo era o PCP(R). Fiquei baralhado e ainda mais quando soube que esse partido era clandestino. Porque sim.
O meu batismo fez-se em reunião noturna, numa aldeia dos arredores da cidade. A célula era formada por dois professores, dois estudantes e um pastor. Comigo, ficámos três estudantes. Um partido clandestino exigia um nome clandestino, como é lógico. Perguntaram-me que nome queria adotar e eu fiquei pensativo e respondi: JESUS. Riso geral. O camarada responsável da célula, formado na grande escola da cintura industrial de Lisboa, sabia que não se podia brincar numa reunião e por isso pediu um intervalo. Então todos nos pudemos rir às gargalhadas. “Imaginem a reunião do Comité Central: Camaradas, temos um novo camarada na Região Outubro: JESUS.” Retomámos os trabalhos e foi-me sugerido escolher outro nome, mas bloqueei. Que outro nome melhor para designar alguém que trabalhava em prol dos outros? Foi-me sugerido Paulo, pois São Paulo fora importante nos primórdios da Igreja. Aceitei e penso que fiquei bem servido.
Tive sempre muitas dúvidas, como seja aceitar a ditadura do proletariado, eu que aspirava a uma sociedade genuinamente democrática. Mas conheci a vida dura e solitária dos pastores, a lutas dos professores na formação do seu sindicato, fiz trabalho académico na minha escola e trabalho cultural na minha terra, acompanhei as tentativas das minhas gentes para construir uma vida comunitária melhor, fui a um congresso, participei em manifestações… Um dia pintei um mural diante da casa de uma colega da escola. De manhã ela protestou pela paisagem que eu lhe impusera ao acordar. Eu neguei, mas ela apontou-me para as sandálias, salpicadas de tinta, como um arco-íris.
Depois vieram as divergências internas sobre as alianças à esquerda, problema ainda não resolvido e que é um dos responsáveis pelo estado atual do país, pela inexistência de uma alternativa ao presente liberalismo. E as falhas na democracia interna, no chamado centralismo democrático, bom e eficiente quando é democrático, completamente torcidário se alguém de cima quer desrespeitar os direitos das estruturas inferiores. (Na verdade, o centralismo democrático não é muito diferente do regime de organização interna da Igreja Católica!)
Por isso implodimos totalmente o PCP(R) e parcialmente a UDP. Em jeito de balanço, penso que nem uma gota de água fui no grande mar da nossa revolução. Fiz bons amigos, alguns do maiores até hoje. Mas havia pouca preparação e demasiada generosidade e impulsividade. E muito sectarismo entre todos os que eram diferentes, vício que vinha da clandestinidade do antes 25 de Abril e que continua bem vivo à esquerda, para gáudio da direita, muito mais pragmática e calculista.

Entre os crimes do cónego Melo e seus pares, no Verão Quente de 75, (mataram o meu camarada Pe. Max) e os crimes das FP 25, nos anos oitenta, houve muita gente simples, que fez coisas simples, de um e do outro lado da barricada, na esperança de melhorar a sua vida e a dos outros. E conseguiu, pois nunca os portugueses viveram como nas últimas décadas (e ninguém me queira convencer de que foi um crime, os mais humildes também têm direito à dignidade!). Mas muitos filhos da democracia aproveitaram-na apenas em seu benefício e alguns querem empobrecer-nos a todos, apenas para agradar ao grande capital mundial e daí tirar proveito pessoal. Há cerca de dois, três anos, um dos homens mais ricos dos EUA dizia que se estava a travar uma guerra entre o capital e o trabalho e que o capital estava claramente a vencer. Se ele o disse, quem somos nós para duvidar? Aliás, já estamos a senti-lo na pele.

3 comentários:

  1. Embora esteja implícito no meu texto, fica o esclarecimento para algum leitor mais distraído: sempre, e isso inclui o "período revolucionário" pensei que a sociedade ideal é a do pluralismo democrático, aquela em que vivemos.
    Mas não podemos aceitar tudo, nem branquear o passado, como o Salgueiro Maia ter sido exilado para os Açores, depois do 25 de Novembro, ele que fizera o 25 de Abril e voltara para o quartel de Santarém, sem mais ambições.
    O problema é manter a sociedade limpa dos corruptos e exploradores gananciosos, isto é, imperar o direito.
    A Maria José Morgado (ou o Saldanha Sanches - há gente que faz tanta falta!) dizia há uns tempos que a sociedade democrática é a ideal, mas tem de se manter a corrupção em níveis aceitáveis. O problema é quando os legisladores (os políticos) não estão interessados nisso!

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  2. Acompanho-te no teu comentário com a seguinte ressalva quanto ao imperar do direito.
    O direito até impera. se reparares toda a atividade está hoje regumentada: até para deitares dois foguetes nas festas do verão precisas de recorrer ao direito. Há hoje demasiado direito.
    Mas o direito que nasceu como forma de garantir a harmonização social e a segurança dos mais fracos, quer fisica, quer economicamente, parece estar hoje a ser usado como forma de aniquilamento e não de garantia, e a atuação do poder é sempre, como sabes, sustentada no direito. O direito no sentido que o usas parece não se aplicar aos fortes ou raramente se aplica. Então o que pergunto é: o direito ainda é direito ou começou a entortar? Parece-me bem que sim, que entortou, porquanto a generalidade que é uma das suas caracteristicas, a par da abstração, deixou praticamente de ser aplicavel.
    F.Barroso

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  3. A discussão a que hoje assistimos sobre a distância entre a Constituição e a realidade está no ponto onde tocas, Francisco. Aqueles que apelam a um maior realismo para a interpretação dos juízes do Constitucional, fazem-no em função dos seus interesses do momento. Defendem isto agora, e o seu contrário, mais tarde, por puro interesse pessoal e/ou corporativo.
    Quando os juízes interpretarem em função da realidade, perderão toda a isenção e passarão a ser instrumentalizados. Interpretar a realidade é a obrigação dos políticos. Encontrar as soluções dentro do quadro constitucional, para os problemas que a realidade nos apresenta, é da obrigação e é um dever necessário dos políticos.

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