Mudam-se os
tempos, mudam-se as divindades. Mas a nossa sina, de simples mortais, é como no
mito de Sísifo. A de um recomeço permanente. Ele a empurrar o seu enorme
penhasco montanha acima sem o conseguir fixar lá no alto; nós a ter de recomeçar
vezes sem conta as nossas vidas, que tantas vezes, de forma imprevista e
inesperada, se desmoronam.
Em tempos
remotos, no princípio do mundo, conta-se nos Génesis, 11, 2-8, que os homens da terra de Sennaar, disseram uns
para os outros: vamos construir uma cidade e uma torre cuja extremidade atinja
os céus. Assim, tornar-nos-emos famosos (vem de longe a mania das grandezas)
para evitar que nos dispersemos por toda a terra. O Senhor, porém, desceu, a
fim de ver a cidade e a torre que os filhos dos homens estavam a edificar. E o
Senhor disse: eles constituem apenas um povo e falam a mesma língua. Se
principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem
todos os seus projectos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem
deles que não se compreendam uns aos outros. E o Senhor dispersou-os dali para
toda a face da terra….
Não convém esquecer,
que pouco tempo antes Adão e Eva tinham sido expulsos do Paraíso, por causa de
uma outra mania. A mania do conhecimento. Moral da estória: as manias da
humanidade têm-lhe saído caras.
Provavelmente,
cansado destes recomeços o homem vai-se afastando cada vez mais deste Deus,
criando outros em substituição, bem mais tolerantes: ídolos de barro, de
madeira e até de oiro. Nos nossos dias, porém, fruto de milénios de evolução e de
enormes avanços tecnológicos, de uma realidade virtual, quase tão real como a
real, o que é que faz? Cria a divindade mais sofisticada, que jamais se viu: o
mercado.
O mercado é um
deus abstracto, que ninguém pode conhecer totalmente. Intangível. Mas com um
poder incomensurável e com desígnios totalmente indecifráveis, apesar dos
milhares que se dedicam ao estudo das suas leis. Manifesta o seu poder pela
moeda e todos perante ele se vergam, e se ajoelham.
Desde humildes
seres humanos capazes de passar o dia de braço estendido à espera de ser tocado
por migalhas do seu poder, até aos homens mais poderosos, todos procuram agradar
ao seu olhar.
Mas a humanidade
frágil que é, pecou de novo. Olhou em seu redor, viu todos os campos
verdejantes, leite e mel em abundância e pensou no seu íntimo: Vivo tão bem,
nada me falta, vou gozar a vida. Encheu-se de soberba, ignorando que a soberba
é a pior das manias que se pode ter. É como construir uma torre até aos céus,
como a dos homens de Sennaar e mudar-se para o paraíso sem mais nem menos. Ora,
é claro que nenhuma divindade está disposta a tolerar uma afronta dessas. Por
isso, fomos expulsos do novo Éden. Escorraçados e confundidos.
Os líderes dos nossos tempos, incapazes de
pensar o futuro, de se preocuparem com a felicidade dos seus povos, na ânsia
louca de apaziguar aquele deus cruel, tornaram-se piores que antigos sacerdotes
de Baal que, de quando em vez, lhe ofereciam sacrifícios para acalmar a sua
fúria. Estes novos sacerdotes, os poderosos representantes do mercado, quantos
milhares, ou melhor, quantos milhões de sacrifícios diariamente lhe oferecem?
E a insanidade é
tal que, o nosso ministro das finanças já sofre notoriamente do sindroma da ausência da divindade. Cada
vez que aparece na TV diz que quer voltar ao mercado, ao deus poderoso, o mais
depressa possível, mas este, poderoso e cruel só o permitirá quando tiver o
odre cheio de sacrifícios. E ele sem forças para continuar a imolar as suas
vítimas… anda arrasado. Vejam-lhe as olheiras.
Outra questão
que me preocupa solenemente é a das galinhas poedeiras. Diz a canção que são doidas,
doidas, mas agora defende-se que também elas merecem ter gaiolas tipo mansão,
com ninho, com poleiro e tudo. Eu nada tenho contra elas. Adoro-as na canja,
com hortelã. O que já não acho bem, é que talvez por isso, tivesse que reduzir-se
o espaço per capita, nos lares, nos
infantários e nas salas de aula. Este tipo de contradições só parecem
justificar-se, pela confusão e esgotamento dos mais altos responsáveis da nação,
ou não será?
Em verdade, em
verdade vos digo: é impossível fugir ao destino e à fúria divina, mas podemos
manter algum controlo sobre a situação. Como? Cultivando a nossa
responsabilidade individual e colectiva. É com ela que criamos algum espaço de
liberdade. O melhor dos bens.
francisco
barroso, 1º de maio de 2012 .
PS. Esta crónica
é dedicada ao Maurício Melfe, grande contador de estórias que tenho prazer de
conhecer. Que a receba como um abraço apertado.
Como vem sendo hábito, o Francisco não deixa este texto, cheio de actualidade, sem a subtileza que lhe ê reconhecida, pegando em mundos distintos, divinos e mitologicos acrescentou-lhe os ingredientes necessários para nos dar a sua visão acutilante da realidade. A não perder o próximo desenvolvimento.
ResponderEliminarO Chico Barroso já nos habituou a isto; à sua maneira, é um filósofo, sem precisar de citar os clássicos...Eu sei disso, porque o conheço; pode tratar assuntos sérios da história em prosa épica, num estilo eloquente, que revela a sua abundante cultura; e sabe-o mesclar, a propósito, com humor, com pequenas estórias;
ResponderEliminarAliás, reconheço-lhe uma faceta humorística inata...
A sua preocupação é o Homem e os seus valores. O Homem que, hoje, como ontem, se dilui na efémera materialidade...
Continua, ó primo !
Um abraço.
José Barroso
Zé, isso é amor de familia…
ResponderEliminarFrancisco Barroso
Grande Xico. Eu, quando for grande gostaria de filosofar assim e esbanjar sabedoria pelos meus amigos, tal como este nosso bem amado mestre. Um beijão. Dani, das profundezas da serra algarvia
ResponderEliminarChico:
ResponderEliminarComo andas a trabalhar bem...
A Senhora da Orada será no quarto domingo de Maio, dia 27, e a Feira de Gastronomia a 22, 23 e 24 de Junho.
Nesta já haverá muita cereja, na primeira talvez.
Está tudo regado, não precisas de te preocupar!
Um abraço.
José Teodoro