sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A herança de Kadafi

Estava eu a comer um caldo de vagens polvilhado de segurelha (um verdadeiro mimo para os apreciadores da cozinha minimalista) quando me aparece a imagem ensanguentada de Kadafi na TV, noticiando a sua morte (péssimo gosto de escolherem as horas das refeições para mostrar este tipo de imagens).

Pensei. A esta hora já deve estar na barca de Caronte a atravessar a Estige e o Aqueronte a caminho do Inferno, mas logo o pensamento religioso, que não me abandona, porque configurado na fé, se sobrepõe e imaginei a experiência difícil e de limite dos seus últimos dias e na possibilidade do arrependimento. Teve mais tempo que o bom ladrão e Jesus podia ter-lhe dado a mão. Não me parece que alguma das hipóteses seja mais válida que a outra e não há para já maneira de as testar.

No entanto, depois de um exercício de hermenêutica apurado, quem sabe, pelo aroma da segurelha, apercebi-me da quantidade enorme de admiradores, que ele tinha e tem, e que dificilmente imaginaria, mesmo como mera possibilidade.

São factos públicos e notórios (graças à TV) os rasgados elogios que ainda há poucos anos lhe fez o nosso ex-Primeiro Ministro. Por toda a Europa o recebiam com pompa e circunstância e adoravam tanto o seu carisma como os depósitos que fazia nos bancos por esse mundo fora.

Caiu em desgraça, foi perseguido até à morte, mas a sua herança espiritual mantém-se viva – o pensamento Kadafiano.

Querem exemplos? O nosso país está cheio deles. O nosso país é, na verdade, um país singular. É um país que está separado por uma linha (como dizem na TV) abaixo da qual estão os que trabalham, estudam, gerem micro-mini-pequenas e médias empresas que produzem serviços, conhecimento, produtos, isto é riqueza e acima da qual estão os que ilicitamente se apropriam dessa riqueza.

Faz algum sentido que um gestor público, por mais capaz que seja, só porque está à frente de uma empresa modernaça que dá pelo nome de Renováveis e que é financiada por nós todos tenha um prémio de produtividade de 3 milhões? O que é isto? Pensamento Kadafiano.

Faz algum sentido, que o titulares de cargos políticos, numa situação de privilégio, se tenham atribuído subvenções vitalicias, ao fim de 8 anos de actividade, que muitos deles recebem antes da idade de aposentação estabelecida para o regime geral ou da função pública e com o país à beira da banca rota, não tenham a coragem de as suspender até haver de novo condições normais de pagamento. O que é isto? Pensamento Kadafiano.

Faz algum sentido, que num país com o nível de vida elevadíssimo como o nosso se vá confiscar parte do salário de pessoas com rendimentos acima de 485 €, enquanto os gabinetes Ministeriais continuam a usar carros de alta cilindrada ao preço que está a gasolina? O que é isto? Pensamento Kadafiano.

Estes são alguns elementos de prova de que aqueles que estão acima da tal linha que nos separa já não conhecem as pessoas concretas (só vêm abstracções), não conhecem a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto.

O professor Ernesto que me perdoe, mas hoje acabo com o Eclesiastes: Vi tudo o que se faz debaixo do sol e achei que tudo é vaidade e vento que passa.

Francisco Barroso

3 comentários:

  1. Grande texto, parabéns!
    e o detalhe fabuloso de inventares um novo conceito "o Pensamento Kadafiano", qualquer dia destes vais ouvir as tias de Cascais, quando quiserem fazer referência ao Kafka (elas não sabem quem é, mas é chique), dizerem - Isso é tão Kadafiano.

    Mas perante o factos o nosso país é Kafkiano e Kadafiano.

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  2. És um pensador lúcido, clarividente.
    Sabes que não me tinha ocorrido que muito do que vemos e sabemos acontecer acima da "tal linha" é fruto do pensamento kadafiano?

    Mas olha que apesar de tudo poder ser vaidade e vento que passa (como fizeste questão de referir na tua crónica), há marcas que ficam, indeléveis, depois do vento passar. O Eclesiastes é um livro sapiencial que demonstra a futilidade da vida, é certo, mas também denuncia as consequências de uma estrutura social injusta.

    É preocupante a crescente desigualdade social, é preocupante o estado da nação e é preocupante andarmos todos tão preocupados. Mas mais preocupante do que tudo isso é o nosso défice, não o "tal" mas o défice de líderes.

    Gostei de ler a tua crónica.

    Que o aroma da segurelha, a par de outros aromas, continue a apurar os teus exercícios de hermenêutica.

    MM

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  3. O grande guru volta a atacar. E, como sempre, acertando em cheio na mouche da nossa curiosidade e não só. Sou bem capaz, depois de ler com atenção e a demora que o camarada Xico merece, até de lhe dar umas achegas, por estes dias. Para já, vou flanar para a Beira e almoçar com o meu amigo Pe. José Cortes na mansão de xisto do Ismael na Malhada Velha. E ouvi dizer que estará lá, pelas nossas bem amadas terras de Bogas, uma boa rapaziada da nossa e muito nossa juventude verbita. Dani, o rei de Bogas e arredores

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